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A instabilidade das Unimeds

  • há 2 dias
  • 7 min de leitura
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Plano de saúde gerido no formato de cooperativa médica tem grandes desafios. Unimed Cuiabá atravessa uma guerra de cooperados: intrigas, acusações, processos criminais - e o consumidor no centro disso tudo


A história recente das Unimeds brasileiras revela um padrão preocupante de crises administrativas que expõem fragilidades estruturais no modelo de gestão cooperativista. Desde a convocação de cooperados da Unimed Cuiabá para destituir sua diretoria até a crise severa vivenciada pela Unimed Ferj, passa-se a questão central: como cooperativas de saúde podem alternar entre períodos de estabilidade questionável e momentos de colapso administrativo?


A resposta reside na tensão não resolvida entre a reeleição indefinida de líderes e a alternância constante de diretores inexperientes, um dilema que afeta consumidores e profissionais de saúde em todo o país.


O Sistema de Gestão de Uma Cooperativa: Entre Democracia e Instabilidade


As cooperativas de trabalho médico, como as Unimeds, constituem estruturas únicas no sistema de saúde brasileiro. Diferentemente de empresas convencionais com estruturas hierárquicas rígidas, as cooperativas operam sob princípios democráticos nos quais os médicos cooperados elegem periodicamente uma diretoria para comando das operações. Este modelo, embora teoricamente alinhado aos valores cooperativistas de autogestão, cria desafios consideráveis quando aplicado a organizações complexas que gerenciam milhares de beneficiários e movimentam centenas de milhões em receitas anuais.


Os mandatos nas Unimeds variam significativamente conforme as normas estatutárias de cada singular. Algumas cooperativas estabelecem períodos de dois anos, outras de três ou cinco anos. Mais importante ainda, as regras sobre reeleição diferem radicalmente entre as instituições. Enquanto algumas limitam os mandatos consecutivos ou impõem restrições rígidas à recondução de diretores, outras permitem reeleições indefinidas, criando possibilidades de que os mesmos indivíduos permaneçam nos cargos executivos por décadas consecutivas. Esta diversidade regulatória não representa simplicidade ou flexibilidade, mas sim a ausência de diretrizes claras que orientem as práticas administrativas em todo o sistema.


O Estatuto Social e a Lei 5.764/71 estabelecem os marcos legais para o funcionamento dessas entidades, mas deixam margem considerável para interpretação local. Quando ocorrem conflitos ou questionamentos sobre a gestão, como exemplificado pela convocação de assembleia na Unimed Cuiabá no dia 25 de novembro, os mecanismos democráticos se mobilizam, mas frequentemente revelam fraturas profundas na organização. Nestes momentos, a distância entre o ideal democrático e a realidade administrativa torna-se evidente: cooperados convocam assembleias para destituir diretores, apontando problemas que, em tese, deveriam ter sido evitados através de processos de prestação de contas mais transparentes.


Do Oito ao Oitenta: O Paradoxo da Permanência e da Instabilidade


Observa-se nas Unimeds brasileiras um espectro amplo de padrões de permanência administrativa. Em um extremo, encontra-se o caso emblemático de profissionais que permanecem em cargos de liderança durante períodos extraordinariamente longos. A Unimed Recife ilustra perfeitamente este cenário, onde Maria de Lourdes de Araújo atua como Presidente do Conselho de Administração há aproximadamente três décadas. Durante este período extenso, a cooperativa acumulou experiência administrativa considerável, desenvolveu redes de relacionamento consolidadas e construiu reputação no mercado de saúde suplementar.


No entanto, permanência administrativa prolongada não garante sucesso organizacional nem protege contra crises. A própria Unimed Recife, apesar da longa estabilidade em sua liderança, não conseguiu evitar os desafios sistêmicos que afligem todo o setor de saúde suplementar. Este paradoxo sugere que longevidade administrativa isoladamente não constitui fator determinante para o bom desempenho organizacional. Gestores experientes podem tomar decisões equivocadas, manter estruturas obsoletas ou ignorar sinais de alerta que indicam necessidade de mudanças estratégicas.


No outro extremo do espectro encontra-se o oposto: Unimeds onde diretores inexperientes assumem responsabilidades para as quais não possuem preparação adequada. Quando mandatos curtos (dois a três anos) combinam-se com limitações às reeleições, cria-se rotatividade acelerada que impede o desenvolvimento de expertise administrativa. Novos diretores, frequentemente médicos sem formação específica em gestão de saúde suplementar, enfrentam aprendizado prático em organizações de elevada complexidade. Decisões precipitadas, falta de continuidade em projetos estratégicos e erros administrativos passíveis de evitar tornam-se consequências previsíveis desta configuração.


A Unimed Cuiabá exemplifica precisamente este cenário problemático. A convocação de cooperados para votação sobre destituição da diretoria indica que algo funcionou inadequadamente na gestão recente. Os cinco médicos que assinaram o edital de convocação reuniram apoio superior a um quinto do quadro total de 1.271 profissionais, sugerindo insatisfação disseminada com as decisões administrativas. Entre os pontos de pauta figuravam a anulação de decisões passadas, realização de novas auditorias ao balanço de 2022 e reversão de medidas impostas pela ANS. Estas questões indicam que erros administrativos graves ocorreram, provavelmente potencializados pela inexperiência de gestores que não dispunham de conhecimento adequado para conduzir operações de tamanho e complexidade. Ou, estamos simplesmente diante da velha política cooperativista - tão ruim quanto.


A Necessidade de Equilíbrio: Um Ideal Não Alcançado


O cenário ideal para uma cooperativa de saúde envolveria encontrar equilíbrio entre continuidade estratégica e renovação de perspectivas. Instituições bem estruturadas possuem mecanismos que permitam a permanência de profissionais experientes em funções estratégicas de longo prazo, simultaneamente garantindo que novas lideranças tragam ideias inovadoras e questionem práticas consolidadas que possam ter se tornado ineficientes.


Para atingir este equilíbrio, seria necessário que as Unimeds investissem substancialmente em profissionalização de sua gestão. Diversos programas educacionais existem no mercado, como o MBA em Gestão Estratégica de Cooperativas desenvolvido pela UFPR ou cursos de Gestão de Cooperativas oferecidos por instituições credenciadas. Porém, muito poucas singulares realmente implementam processos sistemáticos de capacitação de lideranças. A maioria das Unimeds permanece funcionando sob modelo onde dirigentes são escolhidos por votação democrática entre pares, mas sem exigências prévias de competência específica em gestão, finanças ou regulação do setor de saúde.


Além da capacitação deficiente, observa-se falta de planejamento estratégico que transponha períodos de transição administrativa. Quando um diretor experiente deixa o cargo, frequentemente leva consigo conhecimentos críticos que não foram documentados ou transferidos adequadamente para sucessores. Planos de ação de médio e longo prazo não possuem continuidade quando nova diretoria assume. Mudanças ocorrem não porque houve reflexão estratégica, mas porque novos dirigentes desejam imprimir "sua marca" nas organizações, mesmo quando isto signifique descontinuar iniciativas bem-sucedidas.


A Faculdade Unimed oferece formação em gestão e cooperativismo, conforme demonstra a parceria técnico-científica e educacional formalizada com a Unimed-BH. Contudo, esta educação permanece opcional e não constitui pré-requisito para assumir cargos de liderança. Portanto, muitos diretores ingressam em suas responsabilidades sem fundamentação teórica adequada sobre princípios cooperativistas, regulação de saúde suplementar ou boas práticas de governança corporativa. Esta lacuna educacional contribui significativamente para as crises recorrentes que atingem diversas Unimeds.


A Realidade dos Riscos: Falta de Transparência e Promessas Vazias


Para consumidores e médicos cooperados que consideram aderir a uma Unimed, a situação apresenta riscos substanciais. A opacidade característica do sistema cooperativista permite que diversos problemas permaneçam ocultos até que crises agudas forcem sua exposição pública. Um beneficiário que contrata um plano de saúde com uma Unimed desconhece frequentemente detalhes cruciais: qual é a situação financeira real da cooperativa? Qual é a experiência acumulada de sua diretoria? Existe planejamento estratégico robusto para garantir continuidade operacional independentemente de mudanças administrativas?


O acesso público a estas informações permanece limitado. Diferentemente de empresas de capital aberto que divulgam regularmente dados financeiros detalhados, as Unimeds operam com transparência reduzida. Assembleias de cooperados frequentemente ocorrem em datas irregulares, com participação moderada, e decisões importantes são tomadas por pequenas maiorias de profissionais que nem sempre compreendem implicações financeiras de suas escolhas.


As comunicações comerciais da rede Unimed, amplamente difundidas em rádios locais e mídia regional, prometem benefícios frequentemente exagerados ou simplificados. Conforme observado por quem conhece profundamente o sistema, estas propagandas comerciais escondem complexidades do funcionamento real. Coberturas limitadas, períodos de carência, procedimentos de autorização trabalhosos e discussões frequentes entre beneficiários e prestadores de serviço não constituem temas de propaganda radiofônica. A lacuna entre a promessa comercial e a realidade operacional é significativa.


A crise vivenciada pela Unimed Ferj ilustra dramaticamente este ponto. Quando pacientes oncológicos enfrentaram falta de medicamentos, descredenciamento de clínicas especializadas e precariedade no atendimento, muitos deles já se encontravam em tratamentos irreversíveis. O beneficiário que contratou seu plano em momento anterior não possuía indicadores que previssem a crise administrativa que se desenvolveria posteriormente. A ANS precisou intervir com regime de Direção Técnica para monitorar operações, e finalmente a Unimed do Brasil assumiu responsabilidade pelas operações no estado.


Situações similares desenvolveram-se com a Unimed Cuiabá, onde cooperados agora convocam destituição imediata da diretoria, sugerindo que problemas graves acumularam-se sem resolução adequada. Consumidores que aderiram a planos durante gerências anteriores encontram-se presos em situações contratuais com organizações cuja estabilidade administrativa mostra-se questionável.


Conclusão: A Urgência de Reformas Sistêmicas


O sistema Unimed funciona hoje sob coordenação frágil e transparência insuficiente. Embora tenha contribuído significativamente para a formação de rede de assistência médica importante no Brasil, sua estrutura cooperativista apresenta vulnerabilidades que se manifestam regularmente em crises administrativas localizadas. A alternância entre gestores muito estáveis (frequentemente reeleitos indefinidamente) e períodos de instabilidade com diretores inexperientes não se resolveu através de mecanismos internos de autoregulação.


Consumidores e médicos cooperados devem manter cautela quando aderem a uma Unimed específica. A reputação geral do sistema não garante desempenho de cada singular. É recomendável investigar, tanto quanto possível, a história administrativa recente da cooperativa, verificar se há processos judiciais em andamento contra ela, consultar beneficiários existentes e, especialmente, questionar-se quanto à transparência das comunicações sobre situação financeira e planos estratégicos.


O sistema Unimed carece de mecanismos que garantam continuidade administrativo-estratégica entre períodos de transição de lideranças. Carece também de profissionalização real de suas gestões, não apenas como recomendação, mas como exigência para acesso a cargos de direção. Finalmente, demanda-se transparência significativamente ampliada em comunicações públicas, tanto internas quanto direcionadas aos beneficiários. Até que estas transformações ocorram, o risco de adesão a uma Unimed que rapidamente enfrente crises administrativas permanecerá elevado. A falta de coordenação clara em nível sistêmico e a pluralidade de modelos administrativos incompatíveis contribuem para instabilidade que prejudica consumidores, profissionais de saúde e, paradoxalmente, o próprio sistema Unimed como entidade coletiva.


Disclaimer: esse é um artigo de opinião, que reflete apenas o que pensam os membros do Conselho Editorial do Portal JS, publicado com a proteção do art. 220 da CRFB e do art. 1o, da Lei Federal 5.250.

 
 
 

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