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O crescimento real da judicialização

  • há 25 minutos
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Vários veículos da imprensa divulgaram a manchete "Ações contra planos de saúde dobraram em quatro anos" que carece de mais explicações


Notícia dessa semana informam que o número de ações judiciais contra operadoras de planos de saúde cresceu significativamente entre 2021 e 2024, passando de aproximadamente 160 mil para mais de 300 mil processos anuais. Essa duplicação, amplamente divulgada na imprensa especializada, alimenta narrativas de crise aguda no setor privado de saúde. Porém, uma análise mais cuidadosa dos dados disponibilizados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revela um cenário mais nuançado: embora o crescimento tenha sido realmente expressivo entre 2021 e 2024, os indicadores de 2025 sugerem uma tendência de estabilização que merece atenção.

 

Há poucas semanas, criticamos um cenário muito otimista que foi divulgado, sobre uma pesquisa de satisfação no setor. Então, aqui, cabe também ponderar o pessimista.

 

O Crescimento Inquestionável: 2021-2024

 

Os dados são incontestáveis quando consideramos o período de 2021 a 2024. A duplicação do volume de ações judiciais em três anos representa um aumento extraordinário, refletindo mudanças estruturais no setor. Durante esse período, não apenas o número de processos cresceu, mas também a proporção de decisões favoráveis aos pacientes. Nas cinco principais operadoras de saúde do país, mais de 80% dos processos são julgados procedentes, ou seja, a Justiça reconhece que os pacientes têm razão. Esse dado sugere que as negativas de cobertura por parte das operadoras frequentemente não resistem ao escrutínio judicial, indicando possíveis falhas nos processos de autorização de procedimentos.

 

A Aliança Nacional em Defesa da Ética na Saúde Suplementar (Andess) destacou durante audiência pública na Câmara dos Deputados em dezembro de 2025 que o problema central está na "automatização de negativas de tratamentos". Conforme explicou o médico neurocirurgião José Ramalho Neto, não se trata de terapias experimentais, mas de tratamentos cotidianos, inclusive oncológicos. Esse contexto fornece legitimidade ao crescimento litigioso: pacientes recorrem à Justiça porque suas demandas clínicas legítimas são sistematicamente negadas pelas operadoras.

 

A Dramatização do Recorte: O Viés dos Dados

 

Aqui reside a questão crítica levantada por observadores atentos do mercado de saúde suplementar. A seleção específica de 2021 como ano-base para a comparação acentua o dramatismo dos números. Por quê 2021? Porque esse foi um período pós-pandêmico de contabilização atrasada de processos e mudanças nas práticas judiciais relacionadas à saúde. Escolher esse ponto de partida amplifica artificialmente a magnitude do crescimento, mesmo que numericamente correto.

 

Além disso, a apresentação do número absoluto de "300 mil ações" anuais, sem contextualização adequada, induz a leitores a suporem um crescimento linear e contínuo. Esse tipo de recorte, embora tecnicamente preciso, segue uma estratégia retórica comum em comunicações que buscam maximizar impacto emocional sobre o público e formuladores de políticas.

 

A Reviravolta de 2025: Sinais de Estabilização

 

O elemento ausente nas narrativas amplamente divulgadas é a evolução dos dados durante o ano de 2025. Consultando os painéis dinâmicos da ANS e do CNJ, é possível identificar uma inflexão significativa na trajetória ascendente que marcou 2021-2024.

 

Em 2025, embora tenha havido ingresso de mais de 283 mil novas ações na saúde suplementar até o final do terceiro trimestre, com aproximadamente 33 mil apenas em julho, os indicadores sugerem que o crescimento acelerado das gestões anteriores começou a desacelerar. Esse padrão de crescimento desacelerado é consistente com uma normalização do sistema judiciário em relação aos processos de saúde suplementar, após o pico de 2023-2024.

 

Os dados consolidados da ANS para o primeiro semestre de 2025 mostram estabilização em diversos indicadores de glosa e cobertura. Enquanto a Glosa Inicial apresentou leve recuo de 7,31%, a taxa de resolução de conflitos por intermediação preliminar (NIPs) manteve-se relativamente estável em comparação com os anos anteriores. Isso não significa que os conflitos desapareceram, mas que a velocidade de geração de novos processos reduz-se significativamente.

 

Os Números Por Trás do Consenso

 

É fundamental reconhecer que, mesmo com a estabilização observada em 2025, o volume absoluto de processos permanece historicamente alto. Isso reflete legitimamente pressões reais no setor: crescimento populacional, envelhecimento, incorporação de novas tecnologias que exigem cobertura judicial, e mudanças nas interpretações jurisprudenciais sobre a ADIn 7.265.

 

A decisão do Supremo Tribunal Federal em setembro de 2025 estabeleceu novos parâmetros para cobertura fora do rol da ANS, exigindo critérios técnicos rigorosos. Essa decisão, ao vincular magistrados à medicina baseada em evidências, pode ter contribuído para a desaceleração do crescimento processual observada em 2025. Juízes, agora com parâmetros mais claros, podem estar filtrando melhor as demandas, e operadoras podem estar ajustando suas práticas de negativa de cobertura.

 

Uma Conclusão Equilibrada

 

A verdade sobre a judicialização da saúde suplementar no Brasil não é nem catastrófica nem negligenciável. O crescimento de 2021 a 2024 foi real e expressivo, refletindo disfunções estruturais no sistema de autorização de procedimentos. Porém, os sinais de estabilização em 2025 indicam que o pico passou, seja pela judicialização ter alcançado um platô natural, seja pelas intervenções institucionais recentes começarem a produzir efeitos.

 

Operadores de saúde suplementar, reguladores e formuladores de políticas precisam reconhecer que o problema não é iminente colapso, mas um sistema que demanda reformas graduais: melhor qualificação de auditoria médica, implementação mais rigorosa de medicina baseada em evidências, e conformidade com novos marcos jurisprudenciais. A estabilização de 2025 oferece uma janela de oportunidade para essas mudanças, antes que novas crises surjam.

 

O dado final que merece atenção é que, apesar do litígio intenso, o lucro do setor aumentou 271% entre 2023 e 2024, atingindo 12,8 bilhões nos primeiros seis meses de 2025. Essa informação contextualiza adequadamente a narrativa: há problemas reais de acesso, mas não há insolvência do sistema. Há, sim, espaço para que operadoras, reguladores e Poder Judiciário construam soluções equilibradas que protejam pacientes sem comprometer a sustentabilidade.

 
 
 

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