Entre a cruz e a espada
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Artigos diferentes tratam do mesmo nó crítico do sistema de saúde suplementar: a tensão entre a obrigação de prestar atendimento adequado e os imperativos econômicos que mantêm o sistema em funcionamento
Texto do CQCS traz dados contundentes sobre os dispêndios de planos de saúde com medicamentos — R$ 90 bilhões desde 2019 —, enfatizando o impacto financeiro direto sobre as operadoras. Já artigo do Migalhas adota tom mais jurídico e normativo, defendendo que o direito à saúde não pode ser reduzido a um mero cálculo de risco financeiro, mas reconhecendo implicitamente os limites práticos que a sustentabilidade impõe. Confrontando ambos, é possível extrair um diagnóstico mais equilibrado: sensibilidade à saúde é imprescindível; contudo, ignorar os resultados financeiros condena o acesso coletivo.
Dados e evidências: pressão sobre custos vs. princípio da integralidade
O levantamento do CQCS demonstra claramente que o custo com medicamentos é um dos motores do aumento de despesas das operadoras, especialmente para tratamentos de alto custo e na esteira da pandemia. Esses números não são abstrações, repercutem diretamente no reajuste de mensalidades, no equilíbrio técnico-atuarial dos contratos e na solvência das empresas. Por outro lado, a argumentação de Migalhas lembra que a saúde, por sua natureza humanitária e constitucional, exige prioridade e proteção frente ao mercado. A integralidade do cuidado e a proteção contra recusa de cobertura ou limitação de terapias são pilares jurídicos que não podem ser ignorados.
Ambos os pontos são verdadeiros. Os sistemas privados de saúde operam com base em riscos, capital e fluxo de caixa; se custos discretamente crescentes não forem geridos, a consequência prática é a inflação das mensalidades e a exclusão de pessoas. Ao mesmo tempo, submeter decisões clínicas apenas a critérios financeiros mereceria rejeição ética e legal. O desafio é, portanto, reconciliar esses imperativos sem privilegiar um deles em detrimento do acesso.
Mecanismos de contenção e focos de tensão
O artigo do CQCS sugere, por implicação, que controlar despesas com medicamentos é imperativo — seja por negociações de preço, adoção de protocolos terapêuticos, centralização de compras ou incentivos a genéricos e biossimilares. Essas são estratégias compatíveis com a necessidade de reduzir pressão sobre prêmios. Já o texto de Migalhas adverte sobre os riscos de políticas que reduzam cobertura ou criem barreiras administrativas que violam direitos (limitando acesso a tratamentos necessários, por exemplo).
A tensão aparece quando medidas de contenção são mal calibradas. A negação de tratamentos por razões meramente econômicas pode gerar judicialização, custos adicionais e dano reputacional, além de sofrimento para usuários. Por outro lado, a complacência regulatória diante de custos crescentes transfere o ônus para consumidores via aumentos de mensalidade ou seleção adversa (quando apenas os doentes mantêm cobertura, elevando ainda mais custos).
Impacto distributivo e equidade
Um ponto menos explorado explicitamente por ambos os artigos, mas derivado da análise, é o efeito distributivo. Aumentos sistemáticos de preços tornam planos privados inacessíveis para parcelas maiores da população, pressionando o SUS e ampliando desigualdades. Portanto, a sustentabilidade das operadoras é também tema de política pública e equidade. Proteger financeiramente o setor sem mecanismos de regulação e fiscalização resulta em exclusão social; proteger o direito à saúde sem medidas de eficiência resulta em inviabilidade econômica.
Governança, transparência e incentivos
A solução plausível passa por combinar governança aprimorada, transparência e incentivos alinhados. Recomendações práticas, ancoradas nas evidências dos textos, incluem:
- Transparência nas despesas com medicamentos e tratamentos de alto custo, permitindo controle público e negociação coletiva de preços.
- Adoção de protocolos clínicos baseados em evidências e revisão tecnológica para priorizar intervenções custo-efetivas.
- Incentivos regulatórios para adoção de medicamentos mais baratos, como genéricos e biossimilares, sem prejudicar a liberdade clínica quando justificativa técnica existir.
- Mecanismos de partilha de risco entre operadoras e patrocinadores (empresas, fundos), evitando que custos excepcionais recaiam de maneira abrupta sobre os consumidores.
- Regulação contra práticas de seleção adversa e exigência de provisões técnicas que garantam solvência.
Judicialização e regulação: dois vetores que se cruzam
O artigo de Migalhas aprofunda a discussão sobre como o Judiciário tem sido receptor de conflitos entre direito à saúde e limites contratuais. A judicialização muitas vezes resulta de decisões administrativas ou de mercado que não conciliam direitos e sustentabilidade. Isso cria ciclo perverso: ordens judiciais para fornecer tratamentos onerosos sem mecanismos de financiamento repercutem negativamente sobre prêmios e sobre a capacidade do sistema de manter cobertura ampla. Logo, soluções técnicas e normativas que reduzam litígios — por meio de protocolos, fundos específicos para tratamentos excepcionais ou comitês de avaliação — servem tanto à legalidade quanto à estabilidade financeira.
Mensagem final: equilíbrio responsável
Entre a cruz da sensibilidade — que exige proteção plena do direito à saúde — e a espada da sustentabilidade econômica, não há solução simples. O caminho responsável exige reconhecer que resultados financeiros devem estar na mira de políticas e práticas das operadoras. Isso não é mero tecnicismo, é condição para que o acesso continue sendo universal entre os usuários do setor suplementar.
Ao mesmo tempo, a busca por eficiência não pode se traduzir em retrocessos aos direitos fundamentais. Assim, a prioridade é construir arranjos que alinhem incentivos, ampliem transparência, adotem práticas clínicas baseadas em evidência e estabeleçam mecanismos de solidariedade para custos excepcionais — preservando, simultaneamente, a viabilidade econômica e o princípio da proteção à saúde.
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